´Estamos vivendo um momento pós-colonialista´, diz Maria Lúcia Leal, que coordenou a Pestraf, pesquisa que identificou a existência de tráfico interno e internacional de pessoas para fins de exploração sexual comercial no País. ´Como falar em tráfico de pessoas no século XXI?´, indaga
A pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial (Pestraf) foi um marco para a identificação do problema no País. Como a senhora avalia hoje o estudo?
A Pestraf, pesquisa realizada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), coordenada por mim e mais 140 pesquisadores no Brasil, reúne um debate que, naquela época, ainda não era pautado como temática de reivindicação prioritária dos movimentos sociais. No entanto como vinha articulada com mais sete países da América Latina e do Caribe pretendia examinar se havia ou não o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual.
Como surgiu a discussão?
Ela estava relacionada diretamente com a ratificação do Protocolo de Palermo, em 2000, que trazia uma conceituação mais ampla, dizendo que tráfico de pessoas era o recrutamento, o transporte e o alojamento sob condições de coerção e violência. Essa lei foi ratificada hoje por mais de 135 países no mundo e, no Brasil, em 2002. A Pestraf trata o tema como uma questão transacional.
O que isso significa?
Por ter sido coordenada por uma ONG em defesa dos direitos de crianças e adolescentes, a questão do tráfico foi pensada a partir de uma contra-hegemonia. Isto é, pensar a transnacionalidade do tráfico de pessoas a partir da construção dos movimentos sociais, na perspectiva de como eles analisavam a temática englobando diferentes atores: crianças, adolescentes, mulheres, trabalhadoras do sexo e vendo questões de etnia. O diferencial da Pestraf foi ter sido construída sob a égide dos movimentos sociais que, naquela época, tinham como objeto de reivindicação o tráfico de pessoas.
Quais foram as fontes para a realização do estudo?
A pesquisa baseou-se em quatro fontes: as governamentais, que notificavam os casos. Chegamos notificar cerca de 150 casos, mas que não foram resolvidos. As não-governamentais, que ajudaram a construir uma discussão relativa às rotas de exploração; e tivemos também a participação da mídia. Chegamos a 157 processos; 241 rotas, sendo 130 internacionais, e estabelecemos um perfil dessas mulheres que estavam submetidas ou vulneráveis ao tráfico para exploração sexual. A Pestraf ajudou na compreensão de que havia exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias brasileiras. Porém, não indicou tráfico de crianças e adolescentes do ponto de vista internacional.
O estudo implicou em alguma mudança na legislação?
Houve algumas mudanças na legislação, mas continuamos nos baseando no Protocolo de Palermo. A Pestraf também mostra questões muito complexas em torno do tráfico para fins de exploração sexual. Uma delas, o estabelecimento imediato entre tráfico e prostituição, e, esta relação é muito reducionista. Nem toda pessoa que está na prostituição, na Europa, se encontra sob condição de tráfico e exploração sexual. Então, não podemos generalizar. Pesquisas que analisam o cotidiano e a vivência dessas mulheres são muito importantes para desmistificar a subalterneidade, estigmas, preconceitos, xenofobia e formas repressivas de tratar esses grupos, como transexuais e trabalhadoras do sexo fora do País.
Então a Pestraf não chegou a um denominador comum sobre o assunto?
Ela mostra esses nós que têm que ser desatados. O próprio Protocolo de Palermo precisa ser reavaliado do ponto de vista da sua definição. É preciso deixar claro o que é exploração sexual no campo forçado, voluntário, as questão de vitimização, do consentimento. O objeto do tráfico é complexo e os conceitos precisam ser mais esclarecidos. Isso está diretamente relacionado a um embate de tendências dentro do movimento feminista.
O movimento feminista não fala a mesma língua?
A Coalizão contra o tráfico de mulheres é totalmente contra a prostituição; a Aliança Global tende para a defesa dos direitos dessas mulheres, separando prostituição adulta da infantil e do tráfico. Já o movimento de Autodeterminação, que tem o trabalho como centralidade, defende a legalização da prostituição. É possível observar que dentro do próprio movimento feminista e das trabalhadoras do sexo esse diálogos não são homogêneos, são tensos.
Qual é a tendência de tratar a questão no momento atual?
Hoje, diante do acompanhamento dos encontros mundiais que temos participando, estive em Viena em fevereiro, acho que é preciso maior participação do movimento de prostitutas, trabalhadoras do sexo e GLBT nesses debates. Acho que a Pestraf peca por uma falta de participação desses segmentos. Na época, até pelo limite de sua mobilização e de priorização neste campo, o movimento de trabalhadoras do sexo e dos transexuais queriam dar luz a esta discussão.
A questão envolve elementos políticos, econômicos e de gênero também…
Quando analisamos a questão sob a ótica do impacto das políticas públicas no contexto neoliberal e transacional, podemos perceber que os Estados-Nações perderam seu potencial. Eles diminuíram o tamanho no sentido de sua intervenção social no campo das políticas públicas de prevenção e promoção das pessoas em situação de vulnerabilidade. Estamos tratando especificamente das mulheres e de outros segmentos. Essa diminuição do papel do Estado tem um rebatimento profundo na qualidade de vida dessas populações.
A senhora poderia citar exemplos?
A precarização das relações de trabalho da mulher e a baixa inclusão nas políticas sociais. Nosso estado de previdência não se constitui como tal. Temos um Estado muito frágil e com serviços públicos desintegrados. A vulnerabilidade ocorre nos âmbitos local e global. O que defendemos hoje é que, qualquer mulher, qualquer transexual ou qualquer outro segmento deve ser protegido nos seus direitos de ir e vir. E isso não pode recair no sentido de leis migratórias que impeçam as pessoas de transitar.
Neste momento entra a questão da migração que é diferente de tráfico…
Sabemos que, essas populações de mulheres e transexuais que atravessam as fronteiras brasileiras na condição de migrantes ilegais, acabam sendo barrados com leis muito duras e com muros. Essa política é xenofóbica, repressiva e pós- colonialista. Quando precisaram, os países do Norte abriram suas fronteiras para utilizar essas forças de trabalho em diferentes campos e demandas. Quando não necessitam, e entram em crise por medo e pânico em relação ao terrorismo, principalmente, após o 11 de setembro, essas populações são fortemente reprimidas e criminalizadas. Veja o caso, recente, da Espanha em que brasileiros foram barrados.
A senhora acha que é preciso ter cuidado no momento da formulação de leis a fim de não reforçar o preconceito dos países do Norte? Continue lendo »